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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27397: Notas de leitura (1860): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2025:

Queridos amigos,
A itinerância começa na Praça do Império, espaço onde tem havido controvérsia que não se confina só à toponímia, tem a ver com brasões, não foi por puro acaso que aqui incluí uma entrevista a quem sabe da poda, a professora Isabel Castro Henriques, afinal não se pode viver sem passado, aquela Praça foi urbanizada aquando da Exposição do Mundo Português, guarda aqueles cavalos marinhos colossais de uma escultura que fez parte da época, como há um conjunto de bustos desse evento que podem ser vistos no Jardim Botânico Tropical. É de questionar se o dever de memória não deve estar exposto sem retoques ou disfarces, é duvidoso que este espaço público e outros ainda estimulem o sentimento de nostalgia em relação a um passado glorioso. As novas gerações não guardam nenhum travo amargo de um império que se tornou lusofonia. Indo por aí fora fomos até à Rua do Poço dos Negros, tudo indica que aí houve um influente bairro africano, e sob a expressão Poço dos Negros também há debate dos especialistas. É a penúltima viagem, tudo terminará a falar das Ruas Gilberto Freyre e Viriato da Cruz e do acervo monumental que está guardado na Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 5

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A Praça do Império, tal como a conhecemos hoje, foi construída em 1940, para a Exposição do Mundo Português. O projeto do jardim na Praça foi desenhado pelos arquitetos Cottinelli Telmo e Vasco Lacerda Marques, bem como as esculturas de cavalos-marinhos. A escolha deste local não foi arbitrária, fazia parte do projeto de simbiose entre a memória do Estado Novo e a memória dos grandes feitos portugueses, estão ali o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, bem como o Padrão dos Descobrimentos, construído com materiais perecíveis no tempo da Exposição e reconstruído em 1961.

Quando ocorreu a renovação da Praça do Império no âmbito da reurbanização da zona de Belém estalou a controvérsia, houve quem propusesse um restauro arquitetónico para retornar ao projeto original de 1940, o que impunha a retirada dos brasões florais colocados em 1961; houve igualmente quem defendeu a manutenção dos brasões florais, para a continuidade do conhecimento acerca da história do Império Português. Um ponto curioso deste debate é que nenhuma das posições pôs em discussão a denominação da Praça do Império, atualizada em 2021. Não é despiciendo recordar que na Exposição do Mundo Português, a Praça do Império era um centro articulador do evento que tinha nas proximidades “aldeias indígenas”. Ali estavam 138 “indígenas” provenientes do mundo colonial, Fulas e Bijagós da Guiné, Muchopes e Macondes, de Moçambique, havia mesmo uma aldeia de moleques para que as crianças indígenas pudessem brincar.

Passando à atualidade, os brasões florais da Praça do Império contribuíram para a renovação da imagem do Império. A questão está longe de ser pacífica, e deixamos ao leitor o teor de uma entrevista a Isabel Castro Henriques, uma historiadora que conhece bem a presença africana em Lisboa (https://amensagem.pt/2021/08/11/entrevista-isabel-castro-henriques-historia-colonial-roteiro-lisboa-africana-destruicao-simbolos-coloniais-padrao-descobrimentos/).

Mudamos agora de percurso, da Praça Luís de Camões vamos pelo Loreto até ao Calhariz e descemos a Calçada do Combro, lá em baixo está a Rua do Poço dos Negros que cruza com a Travessa do Poço dos Negros. O autor do artigo referente a este lugar dá-nos informação:
“Em finais do século XIX, descrevendo a cidade de Lisboa que debruçava sobre o rio Tejo, Júlio de Castilho publicou uma carta escrita por D. Manuel I ao Senado de Lisboa, em 13 de novembro de 1515, dedicada explicitamente ao problema da sepultura dos escravizados. Quando faleciam eram atirados em lugares próximos do centro da cidade. Eles não eram bem soterrados, os cães podiam comê-los; e que a maior parte destes escravos se lança no alto que está junto da Cruz de Pau, localizada no caminho que vai da porta de Santa Catarina para Santos. E que posto que nisso tenham previsto penas, e promulgado tudo o possível, não se remediou como deve.”

Assim sendo o Rei decidiu que o melhor remédio seria fazer um poço no qual se lançariam os ditos cadáveres; para acelerar o processo da decomposição decretou que se deitasse de quando em quando uma certa quantidade de cal virgem. Júlio de Castilho reconhecia, na descrição topográfica do documento quinhentista, as encostas de Santa Catarina, que atualmente coincidem com o trajeto do Elevador da Bica com o Miradouro do Adamastor e interrogava-se se estaria nisto a origem do Poço dos Negros. Isabel Castro Henriques e José Sarmento de Matos chegaram a duas conclusões divergentes. Ela reforçou a hipótese proposta por Júlio de Castilho. Fora das portas de Santa Catarina, localizadas no atual largo do Chiado, estendia-se o bairro do Mocambo, ocupava uma área que incluía o bairro que atualmente é conhecido por Madragoa. O termo africano mocambo, da língua umbundo e corresponde ao termo quilombo, da língua quimbundo. O facto da Rua e a Travessa do Poço dos Negros se encontrarem nesta superfície contribui para corroborar a hipótese de uma alta concentração de população negra nesta parte da cidade (mocambo ou quilombo significava nas citadas línguas africanas pequena aldeia ou refúgio).

Sarmento de Matos contrariou a hipótese de Júlio de Castilho e a investigação de Isabel Castro Henriques, oferecendo outra explicação ligada à presença, na mesma área, do Mosteiro de S. Bento. Ele fundamenta-se na instalação na cidade dos beneditinos cluniacenses, que se diferenciavam dos beneditinos cistercienses, vestidos de branco, por levarem uma capa de cor negra, razão pela qual seriam chamados Padres Negros. No limite sul da propriedade do Mosteiro encontrava-se um poço de água que os religiosos deixavam a população utilizar. Por isso, em sua opinião os topónimos da Rua e da Travessa subentendem o significado do poço de água dos Padres Negros. Na atualidade, a Rua do Poço dos Negros integra os circuitos do turismo histórico organizado por Associações de afrodescendentes, como um dos marcos da presença africana na cidade de Lisboa.

A dificuldade em assumir radicalmente este passado traumático levou Sarmento de Matos a afirmar que estes escravos, por serem batizados, não havia legitimidade na prática de atirar corpos de cristãos para poços. Porém, o documento de 1515 revela um pormenor muito interessante. Os escravizados que, falecidos, não eram sepultados na maneira devida para evitar pestilências, eram dos tratadores da Guiné. Esses corpos pertenciam, provavelmente, aos escravizados que ainda não tinham sido vendidos ou que tinham falecido no mercado da Casa da Guiné e Mina. Os escravos eram vendidos no mercado próximo da praça do Pelourinho Velho (hoje em frente à Igreja de Santa Madalena, a caminho da Igreja de Santo António e da Sé de Lisboa). Assegurar uma sepultura digna constituía uma das principais finalidades das confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Os escravizados recém-chegados, ainda propriedade dos comerciantes escravistas, não beneficiavam destas formas de proteção, e o abandono dos seus corpos representava, provavelmente, a principal causa da prática que vem no documento de D. Manuel I.

O Poço do Negros de Lisboa inseria-se numa área que se tornou zona habitacional da população africana ou afrodescendente na cidade. O bairro do Mocambo é descrito como o segundo dos seis bairros em que Lisboa estava organizada, e incluía as freguesias de Santos-o-Velho, Santa Catarina, São Paulo, Nossa Senhora do Loreto e Chagas, isto é, a vasta faixa da parte ocidental da cidade que ficava fora das muralhas da época fernandina.

A Rua do Poço dos Negros faz parte do debate público, em que é dado destaque aos descobridores portugueses e à epopeia marítima sem nenhuma denúncia das implicações do tráfego negreiro transatlântico. Observa o autor que são postas placas que assinalam a história dos lugares conexos com a vivências das pessoas negras, crê-se ser inevitável que a Rua do Poço dos Negros seja um desses lugares contemplados.

Deixamos para uma última intervenção as ruas Gilberto Freyre e Viriato da Cruz, detendo-nos com mais detalhe na Sociedade de Geografia de Lisboa, por razões óbvias.
Padrão dos Descobrimentos, escultura de Leopoldo de Almeida
A Cruz de Cristo no jardim em frente aos Jerónimos, a Praça do Império tem recordações coloniais que ainda dão controvérsia
Perto da Praça do Império temos o Jardim Botânico Tropical, ali aparecem esculturas do tempo da Exposição do Mundo Português, 1940
Rua do Poço dos Negros na atualidade

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27370: Notas de leitura (1857): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (4) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27395: Notas de leitura (1859): "Amok", por Stefan Zweig; Lisboa: Relógio D'Água, 2022 (Jaime Bonifácio da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista)

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27391: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte IV: impressões de viagem do Ruy Cinatti: Mindelo e Bolama



Guiné > Bolama > Agosto de 1935 > Partida  do vapor "Moçambique", com os participantes do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias, entre os quais se contaria Ruy Cinatti (1915-1986), então com 20 anos, futuro engenheiro agrónomo, poeta, antropólogo que iria mais tarde estabelecer uma relação especial com Timor.

Fonte: Ilustração. nº 222, ano 10º, 16 de agosto de 1935, pág. 9. (A revista, quinzenal, era propriedade da Livraria Bertrand, Lisboa; editor: José Júlio da Fonseca;) custava 5$00 um número avulso (Cortesia de Hemeroteca Digigit6al / Càmara Municipal de Lisboa)


1. Continuação da publicação da série "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935) (*)

Fomos "repescar" um texto do nosso crítico literário Mário Beja Santos (ex-alf mil,   Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com o título  "Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935" (**).

O Ruy Cinatti ficará profundamente marcado por este cruzeiro. Pode- se dizer que, de facto, foi "o cruzeiro da sua vida", sem qualquer ironia (como nós dizemos do nosso para a Guiné). De resto, ele será uma das vedetas do evento, ganhando inclusive um prémio literário pela melhor composição sobre a viagem.

O texto é antecedido da seguinte mensagem do nosso  camarada  e colaborador permanente, o Beja Santos,  com data de 10 de fevereiro de 2016:

(...) Entre chuviscos intermitentes, aquele sábado de manhã na Feira da Ladra permitiu-me adquirir esta preciosidade, ao longo dos anos em que entabulei grande amizade com o Ruy Cinatti, este nunca me fizera referência à sua visita à Guiné e muito menos mencionara existir texto de tal viagem. A sua grande recordação fora a Ilha do Príncipe, deu-lhe fulgor para escrever uma pequena gema literária, o conto "Ossobó".

É bom recordar que este antropólogo e poeta tinha 20 anos quando escreveu estas recordações de viagem. (...)

 


Caoa da revista "O Mundo Portuguès"


"Ruy Cinatti, um dos participantes do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, dá-nos a suas impressões de uma viagem ao Mindelo e a Bolama,  em agosto de 1935"

por Mário Beja Santos


Ruy Cinatti, pintado pela Maluda, Tinha traços fenotípicos chineses, do lado da mãe. O pai foi consul em Londres.
(Cortesia de Mário Beja Santos)

O 1º Cruzeiro de Férias às Colónias, coordenado por Marcello Caetano, constituiu uma novidade pelo modo como se pretendia atrair a juventude aos conhecimentos das parcelas do império. Guardaram-se vários testemunhos dessa viagem em que o regime procedera a uma rigorosa seleção de universitários de elevada craveira.

Um dos escolhidos foi Ruy Cinatti (Londres, 1915- Lisboa, 1986) que se irá afirmar como grande poeta, etnólogo, antropólogo e defensor da causa timorense. 

Tive o privilégio de receber alguns dons da sua amizade benfazeja. Conheci-o quando era membro da direção do jornal “Encontro”, a publicação da JUC – Juventude Universitária Católica, em 1966, fui pedir-lhe um poema, ofereceu-nos “O cego”, o primeiro dos seus “Sete septetos”, livro que viria a ser premiado com o Prémio Nacional de Poesia.

O meu livro,  “A Viagem do Tangomau”, arranca com um encontro em sua casa, convidar-me para jantar na véspera de eu partir para Mafra, para frequentar a recruta. Leu-me poemas de safra recente, que virão a ser publicados a título póstumo. E na correspondência que com ele troquei na Guiné, deu-me sábios conselhos, foi um lenitivo para a minha alma, daí o ter tratado sempre por “Dear father”.

Encontrei em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de dezembro de 1935, o seu texto “A Mocidade Académica e o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias”. 

Chamou-me à atenção, na chegada a S. Vicente, a descrição crua que nos faz da vida dolorosa do cabo-verdiano:

“A vegetação em S. Vicente está reduzida a pequenos oásis de verdura – as ribeiras – regiões sobrejacentes aos leitos de ribeiras subterrâneas, onde se desenvolvem plantas dos climas quentes, e a pequenas extensões de vegetação arbórea cuja ramaria, passada certa altura, se estende, se inclina horizontalmente, se prostra ante a fúria niveladora do vento do deserto, que sibila, que ecoa doidamente nos recôncavos da rocha.

O resto são campos de calhaus partidos, triturados, onde a vida vegetal é impossível, porque as águas que nas épocas de chuva se despenham em torrentes pelas encostas arrastam o pouco húmus que se tenha depositado ou os materiais terrosos provenientes da desagregação da rocha.

Todos estes aspetos, geológico, climático, ausência de vegetação na maior parte das ilhas, motivada ou pela falta de chuvas ou pelo seu desperdício quando cai, conduzem à grande tragédia do arquipélago – a fome.

Em 1924, só em S. Tiago morreram à fome 20 mil pessoas. No Fogo, o colmo é arrancado das casas indígenas para ser cozido e servir assim de alimento. As crioulas levavam os filhos já mortos ao colo, iludindo os administradores, para receberem maior ração”.


E conclui:

“Foram S. Vicente e depois o Príncipe, as ilhas que, no desfilar tumultuante de visões sucessivas, mais indelével recordação deixaram no meu espírito”.




O vapor "Moçambique", da CNN, ao largo de Bolama > Agosto de 1935

Foto: "O Mundo Português", vol II, nºs 21-22, setembro-outubro de 1935
(Exemplar pessoal de Mário Beja Santos; digitalização e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné) (*)


E assim chegaram à Guiné, registará a sua viagem a Bolama:

“O mar muda de cor. Já não é azul ultramarino nem azul-cobalto. As águas são barrentas, com reflexos esverdeados provenientes dos aluviões arrastados pelo Geba e outros rios. A ondulação é mínima, apenas provocada pelo deslocamento do navio.

Atravessámos o dédalo das ilhas Bijagós, cobertas de intensa vegetação verde-amarelada, que me dá uma sensação muito diferente do que eu supunha vir a encontrar.

Costas baixas, em praia, abundantes em recortes e braços de mar, prolongando-se a perder de vista, a ponto de se julgar que a vegetação nasce das águas.

Era já tarde e o sol velado pela fímbria das nuvens caminhava para o ocaso. Não bulia uma folha. Estava tudo parado, tudo embebido num banho morno.

Caminhava ao longo de uma rua de Bolama, com os muros e as casas cobertas de musgo, onde o branco da cal há muito tempo dera lugar ao cinzento esverdeado da terra e das plantas. Andava e não via ninguém. Tudo estava deserto. Só ouvia o ecoar das minhas passadas no cimento do passeio.

Envolvia-me um silêncio sepulcral. Invadia-me um aniquilamento absoluto. Qualquer coisa me amolecia, tornava mais vagaroso o andar. Com a face, com o corpo a escorrer suor, bebi grandes golos de água do cantil; quanto mais bebia mais a sede me torturava.

De repente, em poucos minutos, o céu tapou-se de nuvens; uma ligeira brisa baloiçou a folhagem dos poilões; começou a chover torrencialmente e a água, rejeitada pela terra saciada de humidade, corria em regatos para as margens lodosas do mar. Ali, refrescando a alma, refrescando o corpo com a deliciosa chuva a escorrer-me pelos cabelos e pela face, reagi.

Com outra alma, caminhei com energia, embebendo-me na paisagem tropical verde cinzenta. Nas margens do rio, onde o lodo borbulhava, o mangal de folhagem miúda muito cerrada estendia-se indefinidamente numa estreita faixa, com as raízes brutescas saindo da água.

Com o mesmo imprevisto com que tinha aparecido, as nuvens foram-se, e de novo o sol inundou a terra. Atravessei a cidade; segui por uma estrada onde, dentre o verde brilhante das bananeiras, das árvores de fruta-pão e dos poilões, surgiam as tabancas cor de argila.

Em volta, em porções de terreno sem área nem contorno definido, estendem-se as plantações de mancarra cultivada pelos negros. Grupos de indígenas, diferentes na aparência física e no vestuário, seguiam ao longo da estrada e estacionavam à porta das tabancas.

Uns, quase nus, com as costas tatuadas em relevo, com folhas de palmeira-leque e um grande cutelo nas mãos. Outros, vestidos com grandes camisas grandes que quase chegam ao chão, com o peitilho bordado e um alfange pendente a tiracolo. Mulheres, ora de tanga, ora envoltas em grandes panos, caminhavam com os filhos às costas e com grandes cabaças sobre o lenço amarelo enrolado em volta da cabeça.

Entrei numa tabanca de Fulas. Casas retangulares e circulares, o telhado de colmo estendendo-se para fora das paredes a servir de alpendre ou galeria. Sentados em volta os homens conversam, as mulheres entram e saem. As crianças brincam indiferentes ao que em volta se passa.

Lá ao longe, mas dentro da tabanca, o barulho de muita gente junta a falar atraiu-me. Fui lá.
Formando uma roda, homens e mulheres olhavam, gesticulando, o começo de um batuque. O tambor começou a suar e logo um negro despindo a camisa branca, descalçando as chinelas vermelhas, saltou para o meio, os músculos salientes a brilhar, exibindo o corpo atlético de um deus grego queimado pelo sol.

Começou a andar em volta, olhando a multidão que o cercava, saracoteando o corpo, batendo ritmicamente os pés, em flexões que iam aumentando com rapidez. Dirigiu-se às raparigas que em monte o olhavam embevecidas, num conjunto de cores em que o vermelho e o amarelo predominam.

Cantava a mesma frase com intervalos em que o som fica suspenso no ar e continuava cada vez mais excitado, na sua movimentada dança, dando saltos mortais.

De vez em quando chegava-se ao pé do tocador de tambor, dobrava-se, batendo com os dedos no chão e levantava-se em seguida bem alto, apontando para alguns dos que ali estavam. Era o desafio para a luta.

Ninguém veio. Mais alguns saltaram para o centro e com as mesmas atitudes desafiaram outros. Ninguém veio. Tudo se parecia temer. Em volta, homens e mulheres procuravam animar, batendo compassadamente as palmas, acompanhamento o canto intermitente dos lutadores. Nada conseguiram. Em breve começaram a dispersar. O sol já tinha desaparecido lançando apenas no horizonte um pálido clarão, que mais fazia realçar a beleza eternas das palmeiras.

Em redor os homens, sentados à porta das cubatas, lavavam os pés, preparando-se para a oração muçulmana”.


Ruy Cinatti escreve este texto com 20 anos. Chamou-me à atenção a dedicatória que ele apõe:

“Para o muito caro José Vaz Pinto, esta recordação do nosso cruzeiro de maravilha com a amizade de Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes. Janeiro de 1936”.

(Revisão / fixação de texto, título: LG)

 2.   Comentário do editor LG:

Este foi, de facto, o primeiro e único cruzeiro de férias às colónias, com direção cultural de  Marcello Caetano, que exercerá mais tarde o cargo de ministro das colónias (1944/47), depois de ter sido comissário nacional da Mocidade Portuguesa (1940/44).

Mas em  1937 irá realizar-sen o I Cruzeiro de Férias dos Estudantes das Colónias à Metrópole, transportando estudantes dos liceus de Angola e Moçambique ao "Puto", e depois um outro que levou estudantes de Moçambique a Angola...

A moda do turismo colonial pegou: alguns anos depois iniciar-se-iam os cruzeiros da Mocidade Portuguesa e, posteriormente, da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Claro que os ingleses, os franceses, os alemães, os italianos, etc. , já faziam este tipo de cruzeiros.

O ACP (Automóvel Clube de Portugal), já dera o mote, inaugurando a prática turística do cruzeiro a terras exóticas: em 11 de Julho de 1933, organizou o primeiro cruzeiro ACP a Marrocos (Tânger e Casablanca) e Madeira, a bordo do Quanza (fretado à  Companhia Nacional de Navegação).

É interessante ligar turismo, crise económica dos anos 30 (que afetou duramente os colonos portugueses de Angola e Moçambique, com a quebra da procura de matérias-primas), companhias de navegação (CNN e CCN, em competição), colónias africanas (em disputa e em risco: os italianos e os alemães não viam com bons olhos os imensos territórios de Angola e Moçambique tão mal aproveitados, a par do Congo Belga...), sem esquecer o triunfo das teorias da supremacia racial, mas também a "incubação" do luso-tropicalismo de que o Marcello Caetano será um dos grandes arautos"...

Vd. Silva, Maria Cardeira da, et Sandra Oliveira. « Paquetes do Império ». Castelos a Bombordo, édité par Maria Cardeira da Silva, Etnográfica Press, 2013, https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.347.



quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27389: Historiografia da presença portuguesa em África (502): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1947 (60) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2025:

Queridos amigos,
Vale a pena ler a publicação da Agência Geral das Colónias referentes à viagem do engenheiro Ruy de Sá Carneiro, Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné, chegou a Bissau em 27 de janeiro e regressou em 24 de fevereiro, andou numa dobadoira, Sarmento Rodrigues não lhe deu descanso, logo no dia seguinte começou a fazer inaugurações em Bissau, no Bairro de Santa Luzia e das instalações de abastecimento de água à cidade; no dia seguinte acompanhou os trabalhos da barragem de Picle, depois visitas a obras, a escolas, a hospitais, andou por Mansoa, Canchungo, Cacheu, Barro, S. Domingos, Suzana e Varela, Farim e Bafatá, Gabu, Fá, Bambadinca e Xitole, Porto Gole, Fulacunda e Catió, Guileje, Bolama, Bubaque, missões geohidrográfia e geológica... Era o espelho de uma dinâmica imprimida por aquele governador que chegara em 1945 e que logo anunciara vir por pouco tempo e ter muitas coisas para fazer, primeiro acabar as obras que vinham do passado, trazia um enorme entusiasmo para inaugurar muitas outras coisas, o que de facto aconteceu.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1947 (60)

Mário Beja Santos

1947 é um ano marcado pela visita do Subsecretário de Estado das Colónias, Engenheiro Ruy de Sá Carneiro, chega a Bissau em 27 de janeiro, tem à sua espera um programa trepidante, dão-se só alguns exemplos: inauguração do Bairro de Santa Luzia, para indígenas; visita aos trabalhos de aproveitamento agrícola na barragem de Picle, visita ao Asilo de Bor, visita ao Forte de Cacheu, festa dos Felupes em Suzana, grande desfile de indígenas em Bafatá, visita à serração de Fá, aos novos edifícios e obras em curso em Porto Gole, inauguração do Palácio do Governo em Bolama, depois de reconstruído… isto é só uma amostra.

Mas vamos pôr o foco em Sarmento Rodrigues, continua a trabalhar a um ritmo acelerado. A agricultura está manifestamente no topo das suas preocupações, mas quer reforçar a malha administrativa, exibir as potencialidades que a colónia oferece, são remodelados os serviços geográficos e cadastrais, melhorados os serviços da estatística, decorre uma exposição em Bissau, dão-se amnistias que são concedidas em homenagem às comemorações do quinto centenário da descoberta da Guiné. Vejamos agora a legislação.

No Suplemento ao n.º 4, Boletim Oficial n.º 5, de 27 de janeiro, publica-se uma Portaria de Marcello Caetano, as armas, bandeira e selo da cidade de Bissau:
Armas – em campo de prata, uma torre de vermelho, aberta e iluminada do mesmo esmalte, entre duas cabeças de negro toucadas também de vermelho. Coroa mural de ouro de cinco torres. Listel branco com os dizeres – Cidade de Bissau.
Bandeira – esquartelada de vermelho e de negro. Cordões e borlas de vermelho e de negro. Haste e lança douradas.
Selo – circular, tendo ao centro as peças das armas sem indicação dos esmaltes. Em volta, entre duas circunferências concêntricas os dizeres: Câmara Municipal de Bissau.

A modernização também se irá refletir no Código da Estrada da Guiné Portuguesa, consta do Suplemento ao n.º 23, no Boletim Oficial n.º 17, de 14 de junho, não deixa de ser uma curiosidade no artigo 29: “Nenhuma viatura de tracção animal pode circular ou estacionar na via pública desde o anoitecer ao amanhecer, sem que tenha acesa uma luz branca, pelo menos, na frente do lado esquerdo. Nos carros de bois poderá a lanterna ser conduzida na mão do respectivo carreiro. Quando os veículos formarem comboio, o primeiro veículo deve ter, pelo menos, uma luz na frente e o último uma luz vermelha na retaguarda.”

São reiterados os diplomas sobre o pagamento de pensões aos funcionários aposentados, os proventos da Segunda Guerra Mundial permitem agora abrir os cordões à bolsa. Das palavras que irá enviar ao Jornal da Marinha Mercante, número que ia ser publicado em 15 de dezembro de 1946, Sarmento Rodrigues alude ao comportamento da Guiné com a metrópole, mais propriamente de Portugal, durante o conflito mundial: “Abundantes fornecimentos de oleaginosas evitaram danos que não é fácil avaliar; arroz em apreciáveis quantidades foi enviado para Cabo Verde, Madeira e Açores e até para a própria metrópole; metade da borracha que em Portugal se consumiu, durante esse período de dificuldades, foi a Guiné que a remeteu; e até açúcar, que a Colónia não produz, pôde ser devolvido para Portugal, mercê das economias que se produziram fazer.”

Chega o Subsecretário de Estado das Colónias, tem logo uma tirada de exaltação nacionalista: “Eu espero ver, nesta Guiné fabulosa, dos primeiros aos últimos colonizadores, os representantes da flor dos obreiros que através desse Mundo esculpiram o nome português nas estrelas e nos mares, nas pontes finas das terras e nas bocas largas dos rios, nas altas montanhas e nos baixos traiçoeiros, nas pessoas e nas coisas.” O governador está animado de uma esforçada fadiga de fazer, fazer depressa, mas sólido e honrado. Como dirá, dirigindo-se aos Papéis de Biombo, em Picle, a 29 de janeiro:
“A gente que hoje não tem vista capaz de alcançar o fim das bolanhas cheias de arroz; a gente que tem nas suas moranças os telhados cobertos de espigas a secar e nos quartos os celeiros atulhados; a gente que rodeia as tabancas com altos cercados com belas plantações de mandioca; os que tiveram campos de milho e batata doce, os que têm manadas de vacas e porcos de cortelho e galinhas nos pátios – são os mesmos que no ano passado passavam fome, porque as bolanhas eram lalas e os cercados eram palha; e por isso, em vez de arroz comeram os frutos do tarrafe, cozidos vinte vezes, como aqui me disseram.”

Fazer e fazer depressa. No Suplemento ao n.º 29 do Boletim Oficial n.º 22, de 21 de julho, temos a publicação da Portaria n.º 50, a criação do Asilo de Bissau, destinado a receber mendigos inválidos, de ambos os sexos, que não tenham paredes para prover ao seu abrigo e sustento. Atenda-se à filosofia do diploma: embora o asilo se destine principalmente aos indígenas, poderá, em casos excecionais, albergar qualquer civilizado que se encontre em extrema necessidade; o asilo começará por receber os homens velhos, devendo, à medida que as suas instalações e rendimentos aumentem, promover o abrigo de todos os mendigos, de ambos os sexos; os fundos do asilo serão os provenientes dos donativos públicos e dos subsídios concedidos pelo Governo da Colónia, câmaras municipais, administrações das circunscrições e outros organismos; a assistência sanitária será prestada gratuitamente pelos serviços de saúde.

No Boletim Oficial n.º 30, de 28 de julho, é louvado o Administrador de Circunscrição Fernando Rogado Quintino “pela muita dedicação, competência e extraordinária atividade que tem demonstrado no desempenho do seu cargo, levando a efeito, com zelo incansável empreendimentos notáveis onde sobressaem – além das obras das enfermarias, residências, postos sanitários, pontões, fontes e outras - a construção da nova ponte de Mansoa, com nova estrada e aterros, e a ponte metálica de Bissorã”. Nesse mesmo dia é também louvado o 2.º Tenente Avelino Teixeira da Mota “pelos serviços extraordinários e importantes efetuados com os incansáveis e aturados estudos, trabalhos de campo e colheita de elementos para a elaboração da nova carta geográfica e etnográfica da Guiné Portuguesa”. Mas há aqui um outro aspeto que prende a atenção. O chefe da missão do estudo e combate da doença do sono tinha considerado atacados de tripanossomíase um conjunto de indígenas de Bolama e da ilha das Galinhas, e por isso o governador isentava-os de pagamento de imposto de palhota ou capitação e de quaisquer outras contribuições ou impostos a que estejam sujeitos.

Por último, e numa outra dimensão das preocupações deste governador temos no Boletim Oficial n.º 31, de 4 de agosto uma portaria referente ao plano de urbanização da praia Varela, tinham sido abertas as novas ruas e plantadas muitas dezenas de milhares de árvores, em matas e pomares, edificado um posto sanitário, feita a captação de água e iniciada a construção da central elétrica e da torre de água, e então escreve-se: “É tempo de se considerar uma realidade a tentativa de criação de uma estância de repouso e de lhe dar todo o seguimento que as finanças permitam e as necessidades aconselhem, a fim de que os funcionários e particulares possam o mais cedo possível gozar-lhe os benefícios. Para estes últimos está reservada uma grande área residencial onde poderão desde já escolher os seus talhões e fazer as vivendas. Para os funcionários impõe-se ir gradualmente edificando por conta do orçamento geral da colónia e também pelos das circunscrições. O Governo está fazendo e continuará a fazer novas obras. Às circunscrições assiste o dever de contribuir levantando à sua custa casas que são suas.”

No final da sua viagem à Guiné, o Engenheiro Ruy de Sá Carneiro escreverá que tal digressão lhe permitira constatar o nacionalismo vibrante das populações e tomar contacto com os primeiros resultados das medidas de grande vulto que se estavam a empreender.


Sarmento Rodrigues na Ilha Roxa com as autoridades locais
Em Bubaque com o régulo Gen-Gen
Carta da Guiné de 1933
O porto de Bissau em tempos recentes

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27364: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1946 (59) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27382: Notas de leitura (1858): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maço de 2025:

Queridos amigos,
O nosso confrade José Matos é de uma delicadeza extrema, mal foi publicado este seu último livro deu-me conhecimento do seu conteúdo, autorizando a revelá-lo, sob a forma de uma súmula, a todos os camaradas. Habituou-nos ao rigor das fontes e dos documentos, ilustra com textos pontos sugestivos da obra, igualmente recorre a ilustrações que facilitam a compreensão dos factos. Em termos de narrativa, contextualiza toda a guerra de África e desvela os principais acontecimentos de 1973 que aceleraram a sublevação militar; são igualmente mostradas as etapas da sublevação a partir da legislação que criava um Quadro Especial de Oficiais, e assim progredimos até aos preparativos da sublevação, depois do insucesso da revolta das Caldas os militares esboçaram uma estratégia que contemplou os três ramos das forças armadas e uma multiplicidade de unidades espalhadas pelo continente. Da operação em si e dos acontecimentos do 25 de Abril e subsequentes se fará referência no próximo texto.

Um abraço do
Mário



Atlas Histórico do 25 de Abril, por José Matos, um confrade que nos dá imensa companhia (1)

Mário Beja Santos

Acaba de ser dada à estampa pela editora Guerra e Paz o Atlas Histórico do 25 de Abril, a obra mais recente do nosso confrade José Matos, publicação muito sugestiva que nos permite recordar as etapas fundamentais do 25 de Abril, acompanharemos os alvores da revolução, chega-se à obra de Spínola Portugal e o Futuro e será esmiuçada a queda do regime e revisitada toda a operação que vitoriou o MFA; leitura tão mais sugestiva pela apresentação de imagens e quadros esclarecedores dessas diferentes etapas.

Em 1973, ainda havia a ilusão de que a ditadura portuguesa teria condições para durar; mas nesse ano alterou-se profundamente o cenário internacional, mudou profundamente a situação dos teatros de operações da Guiné e também em Moçambique; chegar-se-á mesmo ao momento de questionar se a Guiné era defensável, foi tema abordado no Conselho Superior de Defesa Nacional, perto do final do ano, julgava-se que ainda havia uma janela de oportunidade, isto na altura em que Portugal começa a sofrer as consequências não só da crise petrolífera, o país é castigado pelo mundo árabe, a inflação torna-se galopante. O ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, procura uma solução para a falta de oficiais para a guerra, propõe um Quadro Especial de Oficiais, estala a indignação do corpo de oficiais do quadro permanente, vão começar as reuniões, a primeira na Herdade do Monte do Sobral no Alentejo.

Desenhado por Diniz de Almeida, o croqui com indicações para os militares chegarem ao Monte do Sobral (Arquivo Diniz de Almeida)

Marcello Caetano remodela o Governo, Silva Cunha passa para ministro da Defesa, os militares continuam a protestar como se verá na reunião de S. Pedro do Estoril. A política ultramarina do Estado Novo isolara Portugal, consumia cada vez mais recursos ao país. Mesmo os Aliados da NATO furtavam-se a apoiar Portugal e a compra de armamento era cada vez mais difícil. José Matos rememora os acontecimentos que envolvem tal política ultramarina, o aparecimento da luta armada a partir de 1961. Destaca o problema da Guiné. Refere uma carta do chefe do Gabinete Militar Arnaldo Schulz, Tenente-Coronel Castelo Branco, para o governador, então em Lisboa, dizendo que “o inimigo colocou-nos a mão no pescoço, como bom lutador de judo, e nós temos dificuldade em sair desta posição”. Toda a situação na Guiné é passada em revista, Spínola regressa da Guiné em agosto, não escondendo que a situação se tornou incomportável, não podia haver solução militar, impunham-se negociações. Marcello Caetano nomeia novo governador, ele escreverá nas vésperas do 25 de Abril que se chegara à exaustão dos meios. Nessa altura já Marcello Caetano procurara sigilosamente conversações com o PAIGC, que ocorreram em Londres, em março.
Os apartamentos de Dolphin Square em Londres (Arquivo José Matos), foi aqui que decorreram as conversações secretas entre o PAIGC e o cônsul português José Manuel Villas-Boas, toda esta operação fora urdida pelo embaixador britânico em Lisboa

Prosseguem as reuniões dos militares conspiradores, o autor descreve a atmosfera em que é publicado o livro de Spínola Portugal e o Futuro, a proposta de criar uma federação já não assentava na realidade, não só nenhum dos movimentos de guerrilha era a favor como Portugal perdera oportunidade de preparar o ambiente que permitiria a conjugação de todas estas vontades. Mas o livro foi o rastilho da revolução, como Marcello Caetano constatou após a leitura do livro, na noite de 22 de fevereiro de 1974. Caetano está já entre a espada e a parede, quer demitir-se mas Thomaz não consente, discursa na Assembleia Nacional, pede-lhe um voto favorável para a continuação da política ultramarina, recebe os oficiais generais, demite Costa Gomes e Spínola, enquanto discursa na Assembleia Nacional surge o manifesto dos capitães numa reunião que se realizou em Cascais, Melo Antunes lê aos presentes um documento por ele elaborado: o regime era incapaz de se autorreformar, a perpetuação da guerra não ia resolver um problema ultramarino; os povos africanos tinham direito à autodeterminação, embora devessem ser acautelados os interesses dos portugueses residentes no Ultramar; era necessário um novo poder político eleito democraticamente que fosse realmente representativo das aspirações e interesses do povo.

Com a demissão de Costa Gomes e Spínola, os militares já em estado de sublevação vão procurar, a partir das Caldas da Rainha, caminhar em direção a Lisboa, a operação não é sucedida, Caetano falará dela na sua última Conversa em Família. Pelas diferentes vias diplomáticas, tenta-se adquirir novas armas, suscetíveis de se equiparar com o armamento da guerrilha. Temendo o uso da Força Aérea por parte do PAIGC, é comprado o Crotale.

Originalmente desenvolvido para a África do Sul pela Thomson-CSF e pela Matra, o Crotale era um sistema de defesa antiaérea para alvos a baixa altitude. Uma bateria de Crotale era composta por dois a três veículos de disparo, cada um com o seu próprio radar de controlo de fogo e quatro mísseis prontos a disparar, e um veículo de vigilância/aquisição. Portugal assinou um acordo de compra com os franceses em Janeiro de 1974, mas este sistema já não seria entregue a tempo. A única bateria de Crotale chegaria em Setembro de 1974, após o fim da guerra, e com a ajuda de Thomson foi revendida à África do Sul em 1976.

Vamos ver agora os preparativos do golpe, estiveram a cargo de um estratega, Otelo Saraiva de Carvalho; ele teve o cuidado de envolver várias unidades militares espalhadas pelo país, era imperativo tomar a capital. Sede do Governo, aqui estavam a televisão e as mais importantes estações de rádio e o aeroporto. Todas as operações seriam comandadas a partir de um centro de comando do MOFA (mais tarde MFA), havia necessidade de um sistema de comunicações fiável, ficou a cargo do tenente-coronel Garcia dos Santos, foi ele o responsável por arranjar o material de comunicações para a revolta.

A fuga do tenente Castro Gil:

“No dia 31 de Janeiro de 1974, ao fim da tarde, os guerrilheiros abateram com um míssil terra ar um Fiat G.91 que prestava apoio de fogo ao aquartelamento de Canquelifá, que estava sob ataque do PAIGC. Este quartel na fronteira nordeste com o Senegal distava cerca de 200 km de Bissau e era uma zona flagelada com alguma frequência pela guerrilha. O piloto ejetou-se e aterrou em segurança, mas teve de fugir para não ser capturado pelo inimigo. Decidiu rumar a norte, para o Senegal, indo pelo mato rasteiro ainda com cinzas ardentes para que a aragem do ar apagasse o seu rasto. De manhã, regressou à Guiné e foi ter a uma aldeia. Aproximou-se e escondeu-se nuns arbustos, a observar o movimento dos naturais e a ver se via homens armados ou fardados como os guerrilheiros. Quando viu que era seguro, entrou na aldeia e pediu ajuda. Surgiu então um homem com uma bicicleta e mandou o tenente Gil instalar-se atrás, arrancando a pedalar em direção ao sul para o Quartel de Piche. No quartel, começou a grande festa da recuperação do jovem tenente, que, no dia seguinte, chegou à base aérea de Bissalanca, onde a receção foi apoteótica e onde a festa se prolongou até de madrugada. Bastante alcoolizado, o tenente acabou internado no hospital de Bissau amarrado a uma cama.”

Texto retirado da obra de José Matos.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27370: Notas de leitura (1857): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (4) (Mário Beja Santos)

sábado, 1 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27373: Os nossos seres, saberes e lazeres (707): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (228): Um aspeto da exposição, com uma museografia excecional, mostrando no centro e ao fundo uma imagem de Henry Moore (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Estando em falta, venho me ressarcir. Talvez combalido pela operação que fiz ao ombro direito, em finais de fevereiro, não deixei de coscuvilhar esta ou aquela exposição, mas quanto à escrita andei um tanto na retranca, folheei muito Boletim Oficial da Guiné com a mão esquerda, com dezenas de sessões de fisioterapia isto vai indo ao sítio. Tratou-se de uma exposição empolgante, tanto a Fundação Gulbenkian, graças à sua secção no Reino Unido, como a Coleção Berardo, adquiriram obras de altíssima qualidade que mostram à saciedade o caráter transnacional das artes plásticas britânicas, como são iluminadas por movimentos de outros países e como contaminam artistas plásticos de outras nacionalidades. Sobretudo Londres atraiu bolseiros da Gulbenkian, nomes como Paula Rego, Bartolomeu Cid dos Santos, João Cutileiro, Graça Pereira Coutinho, Jorge Vieira, Sá Nogueira, Eduardo Batarda, entre muitos outros, são nomes que se podem incluir nesta trajetória de contaminações. Ademais, a exposição Ponto de Fuga tinha uma museografia excecional, lamento não ter feito este apontamento na hora própria.

Abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (104):
Lembranças de uma notável exposição dedicada à arte britânica… e portuguesa

Mário Beja Santos

Um aspeto da exposição, com uma museografia excecional, mostrando no centro e ao fundo uma imagem de Henry Moore

Entre março e julho de 2025, o Centro de Arte Moderna Gulbenkian apresentou na Fundação Gulbenkian uma exposição que mostra uma multiplicidade de geografias na arte do Reino Unido no século XX, evento que reuniu um importante núcleo de obras de arte britânica da Coleção do Centro de Arte Moderna e da Coleção Berardo.
Porquê o título Arte Britânica – Ponto de Fuga? Em 100 obras de 74 artistas, provenientes de sobretudo duas grandes coleções – Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e a Coleção Berardo - completadas por relevantes empréstimos, provenientes do Reino unido e de França, é bem patente a miscigenação, a transferência transnacional que foi sempre um ponto alto da prática artística britânica do século XX. É não só uma arte em mudança como provocou mudança em grandes artistas plásticos portugueses, caso de Paula Rego, Menez, Bartolomeu Cid dos Santos ou Sá Nogueira. A exposição mostra como em plataforma de diálogo há trajetórias e experiências de emigração, vemos o abstracionismo e o ressurgimento da figuração e as muitas vertentes do realismo na cultura visual britânica dos finais do século XIX e todo o século XX. A grande tradição inglesa da paisagem – embora não seja um tema dominante – era dada pela presença de Turner. Enfim, procurava-se dar a ver nesta exposição como os artistas migrantes ou temporariamente deslocados têm sido fundamentais para todos estes movimentos, desempenhando um papel vital na formação e dinamização de diálogos – uma arte britânica que influencia e é influenciada – é arte do Ponto de Fuga.

Pintura de David Hockney, intitulada Pintura a Enfatizar a Imobilidade, 1962. Hockney é um dos mais famosos pintores vivos, desenvolveu a sua obra fora do âmbito da Arte Pop e a sua técnica pictórica permaneceu sempre alheia a modelos norte americanos. Atenda-se à sugestão de movimento, representada da direita para a esquerda, no sentido contrário ao da leitura, reforça a sensação de imobilidade, assim se realça a incongruência entre a imagem pintada e a realidade da pintura enquanto meio estético.
Henry Moore, Luar no Mar, 1888-91
Bridget Riley, Vaivém, 1964
Ben Nicholson, Pintura, Vermelho Cádmio, Limão e Cerúleo, 1936
Jack Smith, Criança a Escrever, 1954
Bartolomeu Cid dos Santos, O Navio dos Loucos, 1961. Interessado desde muito cedo pelo potencial da gravura, sobretudo pelas gradações de negro e pelos seus efeitos dramáticos, e com base na sua experiência de viagem por uma Europa devastada pela guerra, Bartolomeu Cid dos Santos comenta nas suas obras questões sociais e políticas. Através da construção de cenários enigmáticos e inóspitos, utiliza um repertório de figuras identificáveis ​​com feitos nacionais e uma igreja moribunda para transmitir uma mensagem crítica. Em "O Navio dos Loucos", satiriza a ideia de uma nação à deriva, caminhando cegamente para um conflito sem sentido, a guerra colonial.
Paula Rego, O Gigante Minsky, 1958
Reuben Mednikoff, Melodia Orgiástica, 1937
Leon Kossoff, Christchurch, Primavera, 1993
Paula Rego, As Vivian Girls como Moinhos de Vento, 1984. Em 1979, Paula Rego visita uma exposição no Hayward Gallery, onde vê aguarelas pintadas por Henry Darger que serviram para ilustrar o seu romance The Realms of the Unreal (1973), cujas rebeldes protagonistas eram as Viviam Girls. Rego deixa-se seduzir por estas personagens e pelas suas aventuras que lhe lembram a sua própria infância. A pintora retrata a inconstância emocional e a natureza contraditória destas crianças que lutam pela sua liberdade e autodeterminação, enquanto são capazes de se revoltarem umas contra as outras em atos de malignidade rebuscada. Talvez por esta razão as tenha retratado, humoristicamente, como “moinhos de vento”, pois são capazes de passar do mais inócuo acidente doméstico para a carnificina arbitrária.
Francis Bacon, Édipo e Esfinge segundo Ingres, 1983. O autor inspirou-se fielmente na composição do tema que Ingres desenvolveu em três versões de Édipo e a Esfinge, das quais uma se encontra na National Gallery, em Londres. Édipo já não ocupa o centro da pintura, como em Ingres. Vemo-lo no lado direito, deixando apenas visível uma parte de si ao centro: uma coxa e um pé com uma volumosa ligadura que sobe quase até ao joelho e apresenta duas grandes manchas de sangue. Enquanto em Ingres, Édipo é dominante, ocupando o centro, dominando a Esfinge, Bacon transforma o vencedor em derrotado.
Patrick Caulfield, Vista da Baía, 1964
Michael Craig-Martin, Observando, 1986. A sua obra investiga a relação entre objetos e imagens e a capacidade humana de visualizar formas ausentes através de símbolos. Criou um vocabulário de imagens em constante expansão, que formam a base da sua obra até hoje. Nesta pintura o artista retrata nove objetos isolados sob um fundo azul brilhante, dispostos livremente no espaço, com escalas e pontos de fuga diferentes. O título Observando chama-nos a atenção para o próprio ato de observar, levando o espetador a tomar consciência do quanto o simples ato de olhar interpreta e transforma os objetos.
Joseph William Turner, Quillebeuf, Foz do Sena, 1833. Figura cimeira da pintura britânica, Turner irá marcar gerações sucessivas de artistas, dentro e fora da Grã-Bretanha, devido à luminosidade e cor das suas paisagens. Esta pintura representa a povoação de Quillebeuf, no estuário do Sena, local que Turner visitou no decurso da década de 1820. Nela conjugam-se a observação naturalista com a memória e recriação sensitivas da realidade, que caracterizam a metodologia do artista. O resultado é um exercício emotivo de luz e cor, onde se reconhece a tendência para a eliminação progressiva das formas dissolvidas na atmosfera húmida da representação.
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Nota do editor

Último post da série de 25 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27352: Os nossos seres, saberes e lazeres (706): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227): Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27370: Notas de leitura (1857): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
A obra Ecos Coloniais é um exercício coletivo, os investigadores debruçaram-se sobre espaços, atores, instituições e símbolos em Lisboa que revelam a diversidade de reverberações contemporâneas do nosso período imperial e colonial. Inequivocamente, a vastidão destas memórias espalha-se por arquivos, instituições bancárias, esculturas singulares ou em monumentos, museus, palácios, ruas, acervos naturalmente ligados à história do império e da vida colonial, como é o caso da Sociedade de Geografia de Lisboa. Como escreve o historiador Miguel Bandeira Jerónimo, "Pensar seriamente os legados contemporâneos do colonialismo e, em parte, interrogá-los de forma sustentada e multifacetada, implica estender o escrutínio histórico aos momentos posteriores à abolição". É o que aqui fazemos, de forma muito resumida, convidando o leitor mais interessado a debruçar-se na leitura integral desta obra.

Um abraço do
Mário


Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 4

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A que propósito nesta viagem nos devemos deter diante do quadro “Os Pretos de Serpa Pinto”, de Miguel Ângelo Lupi? Lupi celebrizou-se na pintura de retrato e foi professor na Academia de Belas-Artes de Lisboa. Passou por Luanda entre 1851 e 1853, nesse período realizou um conjunto de desenhos a lápis, giz branco e aguada que representam costumes locais, paisagens ou monumentos que analisam a presença portuguesa no território. No seu livro Como eu atravessei África (1881), Serpa Pinto refere Catraio e Mariana, esta possivelmente mulher dele. Serpa Pinto deu incumbências de responsabilidade a Catraio. Analisando este quadro que ficou incompleto, vê-se que as figuras estabelecem um diálogo visual que exclui o observador; as roupas da figura feminina, os adornos e a cesta surgem como uma espécie de marcadores culturais que reverberam as ligações entre o europeu e o africano, veja-se a utilização de tecidos e colares de missangas como moeda de troca ou presente nos contactos com as sociedades africanas.

Escreve a autora deste texto que a leitura desta pintura convoca a presença do passado na atualidade, permite chamar a atenção, por exemplo, para a estátua do Padre António Vieira erguida em 2017 fronte da igreja de São Roque; neste caso concreto do quadro de Lupi, a presença de duas figuras negras no acervo do museu é uma raridade, mas este material artístico possibilita que a sociedade pode pensar-se a si própria no contexto da sua diversidade e do seu passado histórico.

Viajamos agora para o Palácio Nacional de Sintra, onde trabalharam pessoas escravizadas. No inventário de despesas das obras realizadas em 1784-1787 constam os serviços de 12 homens negros; no final do século XIX, ainda se encontram sinais da presença negra neste Palácio, nomeadamente nas cartas enviadas ao Administrador da Fazenda da Casa Real, onde se fala claramente do serviço de pretos. O sinal mais visível da presença negra é no chamado Jardim da Preta como escrevem as duas autoras, “As peças de vestuário sugerem tratar-se da representação de uma mulher do século XVIII dedicada aos serviços domésticos. Junto dela está a figura de um homem branco, provavelmente um pajem. As duas figuras são particularmente expressivas e encenam um dia a dia marcado pelas desigualdades étnico-raciais e de género, onde a exploração laboral e a violência sexual marcam o quotidiano das mulheres negras e estruturam todo um modo de vida.”

A última itinerância de hoje é até ao Palácio Vale Flor, um edifício que até em determinado momento foi pensado para sede do Conselho de Ministros. Este Palácio e o seu conjunto (as antigas cocheiras, o jardim murado e a chamada Casa do Lago, um pavilhão de estilo oriental) é hoje um hotel de luxo no Alto de Santo Amaro, em Lisboa. O Palácio foi mandado dirigir por José Luís Constantino Dias (1855-1932), um conhecido roceiro de São Tomé e Príncipe. De Murça emigrou para África, em 1871. Ao fim de alguns anos, adquiriu a roça de Bela Vista, quando já explorava a roça Rio de Ouro. Enriqueceu, criou a Sociedade Agrícola de Vale Flor, adquiriu património em Portugal; por via do casamento, privou com a realeza, D. Carlos atribuiu-lhe o título de Visconde, tornando-o Marquês de Vale Flor, em finais de 1907.

O edifício que teve projeto do arquiteto veneziano Nicola Bigaglia, foi obra acabada do arquiteto português José Ferreira da Costa, é hoje Monumento Nacional. Em vida, o Marquês criou a Fundação Vale Flor e a sua viúva criou o Instituto Marquês Vale Flor. O Marquês, observa o autor deste texto, não foi apenas um roceiro, foi também um ator central de uma das atividades mais rentáveis associada aos projetos de expansão e consolidação nacionais. E o autor refere que a primeira década do século XX marcada por intensas e repetidas acusações sobre a existência generalizada de escravatura moderna, citando-se o caso do cacau de São Tomé e Príncipe. A legalização do trabalho forçado sucedera à abolição formal do tráfico de escravos e da escravatura.

Houve internacionalmente boicote ao cacau de São Tomé, o Marquês foi o primeiro subscritor de um documento enviado em 1911 ao Ministro dos Negócios Estrangeiros português pelos “agricultores e outros interessados dos progressos das ilhas de São Tomé e Príncipe”. Aludiram estes subscritores à não veracidade das denúncias, houvera pequenos abusos e factos insignificantes, nada mais. Politicamente, ficou tudo na mesma, só se voltará a falar de São Tomé e Príncipe, em termos de brutalidade colonialista, aquando do massacre de Batepá, no início da década de 1950.

E finaliza o autor dizendo que “Escrutinar os sistemas e as sociedades escravocratas e as suas consequências não é o mesmo que interrogar as formações sociais que lhes sucederam, apesar de ser possível identificar inúmeras continuidades. Mas pensar seriamente os legados contemporâneos do colonialismo e, em parte, interrogá-los de forma sustentada e multifacetada, implica estender o escrutínio histórico aos momentos posteriores à abolição. As formas de dependência, desigualdade, exploração, marginalização e desumanização que lhe sucederam precisam de ser abordadas com o mesmo rigor, entre outras razões por que foram elas que propiciaram a formação histórica de algumas fortunas, a edificação do que é hoje considerado património cultural e histórico em Portugal e, sim, a reprodução de hierarquias sociais, económicas e políticas difíceis de combater, que resistem ao vagar da história, ainda que em circunstâncias diferentes”.

A viagem prossegue na Praça do Império, na rua do Poço dos Negros e na Sociedade de Geografia de Lisboa.

Retrato de Catraio e Mariana, conhecido por "Os pretos de Serpa Pinto", por Miguel Ângelo Lupi, c. 1879

“Excelente exemplar de uma atenção ao pitoresco que não fascinou Lupi, a avaliar pela quantidade de pinturas que realizou dentro do género, mas que aqui tem a particularidade de apresentar dois jovens angolanos, conhecidos por Catraio e Mariana, contratados por Serpa Pinto para o acompanharem na sua viagem de expedição científica à África Central, em 1879. Desempenharam um papel fundamental na concretização desta exploração geográfica, ao evidenciarem importantes cumplicidades, descritas no diário de Serpa Pinto, "Como atravessei África", publicado em 1881. O retrato, provavelmente encomendado por Serpa Pinto, encontrava-se no atelier do autor, em 1883, quando morreu.”

Esta citação foi retirada do site do Museu Nacional de Arte Contemporânea, com a devida vénia.
O explorador Serpa Pinto com alguns homens da sua confiança que o acompanharam do princípio ao fim
O chamado Jardim da Preta no Palácio Nacional de Sintra
Palácio Vale Flor

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 24 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27348: Notas de leitura (1855): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27357: Notas de leitura (1856): Escritos de médicos que viveram a guerra colonial (Mário Beja Santos)